Morte e Vida Severina: Análise da História Numa Perspectiva Social
Morte e Vida Severina é um texto de histórias simples e significados profundos. O protagonista é um retirante, um nordestino de vinte anos que foge da seca e da vida sofrida e miserável do Sertão e que, caminhando às margens do rio Capibaribe em direção a cidade do Recife, tem a esperança de encontrar vida melhor.
Na primeira parte do poema o retirante se apresenta. Trata-se de “Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba”. Não é por acaso que o escritor escolheu esse nome, já que é muito comum no Sertão nordestino. Milhares de nordestinos partilham o protagonista seu nome, assim como sua miséria e seu sofrimento. Portanto, o que parece ser uma tentativa de particularizar quem é o protagonista na verdade faz o contrário. Ao se apresentar, Severino encarna todos os retirantes do Sertão, “iguais em tudo na vida” e na perspectiva constante do mesmo tipo de “morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. E viver a “vida severina”, tendo como perspectiva não mais que a morte, é a “sina” que une todos os nordestinos que, vivendo no árido Sertão, trabalham duramente para “abrandar estas pedras suando-se muito em cima” e “tentar despertar terra sempre mais extinta”. Sem apoio suficiente do Estado, submetidos ao domínio, à violência e à exploração dos coronéis do Sertão, sem meios de produzir para sua subsistência, estes severinos vêem-se obrigados a emigrar de suas terras ou moradias para as cidades.
Na segunda parte o retirante encontra dois homens que carregam um defunto. Vítima de uma das formas de “morte severina” citadas na primeira parte, este agricultor, “Severino Lavrador”, morreu de emboscada por causa de uma disputa de terras. O diálogo de Severino com os dois “irmãos das almas” revela o motivo: aquele lavrador morreu por causa da cobiça de outro que desejava se apoderar de seus “hectares de terra” “que não dá nem planta brava” mas onde ele “plantava palha”. Os interlocutores parecem não mais se indignar com a injustiça que ocorre, pois é uma situação contra a qual os severinos do Nordeste não tem como lutar. Afinal, “o que é que acontecerá contra a espingarda” e o assassino? Simplesmente terá “mais campo”. Interessante verificar que ao se falar da bala que mata em invés da identidade do assassino (que parece ser conhecida pelos que carregam o corpo) vê-se no acontecimento algo comum para a vida naquela região. Com efeito as personagens não demonstram a indignação que as poderia levar a lutar contra tal injustiça.
A terceira parte nos monstra um aspecto interessante da cultura no Sertão nordestino: a religiosidade que permeia sua imaginação. O caminho de Severino é marginal ao rio Capibaribe que, por causa da seca, está fino e, em alguns pontos, seco. A sucessão de pequenos arruados cortados pelo fino rio, que vez ou outra encontra uma vila maior, parece ao Severino as contas de um rosário, objeto popular de devoção católica. E o andar do retirante através de uma paisagem monótona e estafante, só suportável pela esperança de alcançar uma vida melhor ao final, lhe é percebido como a reza de uma ladainha ou de um “rosário até o mar onde termina”. A religiosidade que notamos no texto não é uma religiosidade particular do retirante, algo que este ofereça espontaneamente para Deus como forma de devoção, mas uma carga que deve suportar, uma penitência que deve realizar para obter sua redenção. A prática da reza do rosário, tal como a da ladainha, é uma devoção aprendida e realizada socialmente e só pode ser entendida no contexto cultural do devoto. Quando Severino reza seu rosário do retirante o faz com todos os outros retirantes que fogem da “morte severina” em busca de uma vida melhor. Na vida do nordestino severino as peregrinações, as rezas de rosário e as missas se misturam com a crença em benzedeiras, em festas religiosas e em advinhas e lhe dão toda uma forma de ver e entender seu mundo.
Na quarta parte, Severino retirante mais uma vez se depara com a morte. Num local onde esta é sempre tão presente também a religiosidade permeia as tradições populares e trás conformação para os que ainda vivem e significado para os sofrimentos. Mas, ao tempo que a maioria das personagens se conforma, alguém de fora da casa ironiza as excelências (rezas em forma de canto pelas quais o defunto é oferecido à vida após a morte). Como poderia o finado levar para o além aquilo que talvez nunca possuiu no mundo da “vida severina”? Mesmo o caixão que carrega o finado não lhe pertence, não poderia ter comprado em vida, e certamente a “cera, capuz e cordão”, além da imagem da “Virgem da Conceição”, são coisas que lhe custariam grande dificuldade para adquirir. Novamente vemos aqui temos a referência a uma peregrinação. As excelências lembram da cera e cordão para a vela, da imagem da Virgem para a procissão e assim o finado poderá se juntar a tantos outros defuntos que sofrem a “morte severina”, retirantes desta vida para o além. Mas as únicas coisas que esses retirantes realmente possuem e poderiam levar a qualquer lugar, mesmo para o mundo do além, são as “coisas de não: fome, sede, privação”.
O calor, a seca e a falta de comida e de abrigo submete o retirante a um sofrimento intenso durante sua jornada. Entretanto, o nordestino do Agreste e da Caatinga conta com pouca ou nenhuma assistência do Estado e de organizações em geral para sobreviver, o que o leva a decidir enfrentar esse caminho e emigrar. Mas preferiria permanecer em seu local de nascimento e subsistir de sua lavoura ou, tendo saído de sua terra, “achar um trabalho de que viva”. Na quinta parte do poema Severino, cansado, pensa que, se o rio em alguns momentos pára, poderia também ele parar seu caminho e tentar permanecer. Entretanto, o que faz “o Capibaribe interromper sua linha” é a seca. E a consequência da seca é a escassez e a morte, elementos sempre presentes por todo o caminho de Severino. É a morte “ativa”, às vezes até “festiva” (quando cantada na religiosidade popular). Onde quer que se encontre água no Sertão nunca será suficiente para a população que a divide com a parte que é “consumida pelas roças, pelos bichos, pelo sol com suas línguas”.
Numa terra em que o clima não favorece o pequeno e médio lavrador a agricultura não é capaz de prosperar sem ajuda do poder público e dos bancos. Dada a omissão destes para a pequena e média propriedade, o resultado nas cidades do Sertão é a falta de emprego e a escassez. A “vida severina” é uma vida de privações e de miséria, tanto no campo como nas cidades. Com a exceção dos grandes proprietários de terras, que têm acesso a recursos financeiros e materiais suficientes para fazer a terra árida a produzir, a grande massa da população está submetida a essa situação. Na sexta parte do poema o retirante descobre que não encontrará trabalho naquela ou qualquer outra cidade do Sertão. Ninguém dará emprego para um retirante que não sabe mais que lavrar “terra má” e plantar “o algodão, a mamona, a pita, o milho” ou qualquer outro produto do modo que aprendeu a fazer, ou seja, no estilo do “roçado”. Somente os grandes proprietários de terra (dentre estes também aquele tipo de proprietário que buscou com sua “ave-bala” obter “mais campo” para “fazer voar as filhas-bala” e ampliar seu latifúndio) são capazes de mecanizar suas plantações e fazer uso de técnicas modernas de irrigação e tratamento do solo. Sem apoio, o médio produtor não é capaz de concorrer com o grande, pois este conta com maior produtividade, menores custos e apoio dos bancos (para não falar das condições excepcionais que não raro os grandes produtores conseguem obter dos bancos públicos).
A consequência disso é que os severinos do Sertão, se de um lado se vêem obrigados a abandonar suas terras em busca de sobrevivência na Zona da Mata ou em cidades grandes do litoral, deixando suas terras para os grandes proprietários, por outro lado não conseguem trabalho pois não têm nenhuma qualificação ou educação para os tipos de emprego que são oferecidos nos locais para onde migram. Em suas terras de origem “ninguém aprendeu outro ofício, ou aprenderá”. A “vida severina” os acompanham para onde quer que se retirem. Mas esta parte sexta do poema também apresenta um tipo de personagem que não é grande proprietário de terras, não se pode dizer que seja rico, mas consegue sobreviver explorando uma realidade muito presente no Sertão nordestino. A mulher com que o retirante-protagonista dialoga explica que como lá “a morte é tanta” ela vive “de a morte ajudar”. As profissões que se relacionam com a miséria, a doença e a morte são fonte de renda num local onde “só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar”. Mas mesmo esses ofícios são vedados aos severinos retirantes. Para serem médicos ou farmacêuticos precisariam de acesso à educação e ensino superior. E para serem benzedeiras, curandeiros ou rezadeiras, verdadeiros oficiantes da religiosidade popular, reconhecidos a ponto de vir gente “de um raio de muitas léguas” lhes chamar, precisariam de entendimento em artes mágicas e rezas ensinado a poucos. Não só para os latifundiários, mas também a esse tipo de classe média, as mortes “dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear” o caixão no solo.
Um lampejo de esperança, um breve sonho de alívio toma o retirante na parte sete do poema quando chega à Zona da Mata. Depois de longa jornada por terras áridas o protagonista encontra um solo mais fértil, um clima mais úmido, onde os rios perenes têm “água vitalícia” e a terra, ao contrário da encontrada na Caatinga, é “fácil amansar” por ser “doce” e “tão feminina”. Para o retirante acostumado com a Caatinga de solo pedregoso e vegetação ressequida a Zona da Mata lhe parece a chance de uma vida melhor. É lá que então ele deseja plantar “sua sina”, seu destino. Mas não há lugar para ele na Zona da Mata. Nem para nenhum outro severino retirante. A Zona da Mata está tomada pelas imensas plantações onde não se avista “ninguém, só folhas de cana fina” e algumas usinas. O protagonista está pensando em se estabelecer nessa terra que parece o paraíso, o fim de seu “rosário”, mas está iludido. Os grandes usineiros de álcool e cana dominam toda a região que, ao invés de servir para o assentamento de pequenos produtores rurais e suas famílias, estão nas mãos de poucos proprietários. E o trabalho oferecido é pouco e perigoso por expor o trabalhador a riscos de mutilação durante as colheitas.
Na parte oitava do auto, o diálogo entre pessoas em um enterro desfaz a ilusão. O texto que se segue, imortalizado na voz de Chico Buarque de Holanda (na música “Funeral de um lavrador” de 1969), ironiza o trabalhador defunto que sonhou com justiça no campo com uma divisão de terras que resolvesse a miséria de sua “vida severina”. A terra que cobre a cova será, enfim, sua “roça”, onde o defunto poderá trabalhar para si e não mais “a meias, como antes em terra alheia”, e nem como escravo no eito (latifúndio que emprega trabalho escravo ou semi-escravo). Depois de anos de trabalho duro e miseravelmente remunerado o defunto tem seu caixão como “o brim do Nordeste”, que o “veste, como nunca em vida”. E essa terra de latifúndio que o cobre é a mesma que já “bebeu” seu “suor vendido”, sua juventude, sua felicidade e seu tempo de convivência conjugal, familiar e social.
Esta terra rica da Zona da Mata está tomada pelos grandes proprietários. E tal é o domínio que eles exercem sobre essa região que nem trabalhadores, nem os próprio rios, lhes são capazes de resistir. Na parte nona do poema Severino entende “por que em paragens tão ricas o rio não corta em poços como ele faz na Caatinga”. Ele “vive a fugir dos remansos” porque é desviado pelos latifundiários para a irrigação de suas plantações. E nem mesmo nessa terra fértil os trabalhadores recebem uma parte maior por seu “suor vendido”, já que estas são terras de “grande cobiça”. O protagonista conclui que, se deseja defender sua vida da “tal velhice que chega antes de se inteirar trinta”, neste local não deve se estabelecer. “O melhor é apressar o fim desta ladainha, fim do rosário de nomes” de cidades e paragens “que a linha do rio enfia”. Sua esperança de vida melhor o impele em direção ao Recife onde acredita vai encontrar a solução para sua vida miserável, assim como a religiosidade de seu povo acredita que a reza comunitária do rosário, se não melhora sua vida, ao menos impede que se torne insuportável.
Na parte dez, o retirante chega a Recife. Cansado, procura descansar e ouve a conversa entre dois coveiros. Falam sobre o trabalho no cemitério. Para os ricos o cemitério reserva “as belas avenidas”, “o bairro da gente fina”, ou seja, “o bairro dos usineiros, dos políticos, dos banqueiros” e também “dos industriais, dos membros das associações patronais”. Claro que se o defunto, ou melhor, o que herda o dinheiro que o defunto não conseguiu levar para o além, não puder pagar para estar enterrado em tal local, pode escolher o “bairro dos funcionários, inclusive extranumerários, contratados e mensalistas”, tais como “os jornalistas, os escritores, os artistas” e também “os bancários”, os “comerciários, os lojistas, os boticários” e aqueles que, apesar de terem profissão liberal, “não se liberaram jamais” da submissão ao poder econômico que a elite exerce sobre estes de classe média. Os “bairros ricos” do cemitério são melhor cuidados e apresentam menos trabalho aos coveiros. As classes alta e média conseguem melhor assistência de saúde, melhor qualidade de vida, melhor acesso a educação de boa qualidade e tudo isso lhes permite mais que uma vida melhor: lhes permite estarem enterrados em locais mais bem cuidados e dignos. Mas o desumano não está no tratamento que é destinado a quem tem como pagar, mas no tratamento que é negado aos que, apesar de uma vida de trabalho duro, não têm como pagar por uma cova digna.
Neste momento severino nota que, assim como para todos os severinos, o quinhão do cemitério que lhe caberá será aquele de várzea onde “o rio afoga na preamar e sufoca na baixa-mar”. Severino é “gente sem instituto, gente de braços devolutos” e de “enterros gratuitos”. Ele é “gente do Sertão que desce para o litoral” e “fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha”. Para o coveiro, as pessoas que, como Severino, estão destinadas a uma vida de miséria numa favela dos arredores do Recife deveriam ser sacudidos “de qualquer ponte dentro do rio e da morte”. Este coveiro, trabalhador assalariado que não tem consciência de sua própria situação de alienação e de exploração, que acha natural uns terem mais que outros e uns serem tratados com mais dignidade que outros, que não entende a razão que leva pessoas como Severino a sair do Sertão para o Recife, que acredita que alguém possa morar em uma favela cheia de lodo por opção pessoal ou por preguiça, é um legítimo representante da cultura dominante que a burguesia impõe às classes dominadas como se fosse verdadeira e universal. Agora Severino percebe, nas palavras do coveiro, que “vindo por essas caatingas, vargens, ai esta o seu erro: vem é seguindo seu próprio enterro”.
Severino fica desiludido. Na décima-primeira parte do poema, Severino percebe que não tem como fugir de sua “vida severina” e que o seu destino é forte demais para que possa lutar contra. Não tem como evitar a morte e, quando essa chegar, evitar sua indigência. É fato que ele sabia que depois do “rosário de cidades e de vilas” que caminhou “não seria diferente a vida de cada dia”, mas teve a esperança de “que ao menos aumentaria na quartilha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa”, ou o seu “aluguel com a vida”. É o desejo da grande maioria dos brasileiros: uma vida que, se não rica, ao menos seja digna, com comida e saúde suficiente. Mas, se isso é muito menos do que qualquer ser humano merece, nem isso lhe é garantido por uma sociedade que privilegia quem já tem muito e marginaliza quem já está a sua margem e tem nada. Agora Severino acredita que seu enterro ele seguia, que não lhe resta mais para onde se retirar, e decide apressar a morte: pretende de jogar da ponte de um dos cais do Capibaribe.
Na décima-segunda parte, Severino trava diálogo com José, o carpinteiro. Esse diálogo muda os ânimos de Severino, mas demonstra porque Morte e Vida Severina é um auto de Natal. A relação entre este carpinteiro (“Seu José, mestre carpina”, vindo de “Nazaré da Mata”) e São José, pai de Jesus, é clara. Nesta parte do poema começa algo que poderíamos comparar com a encenação de um presépio. Se de um lado o tema de Natal está presente porque assim foi encomendado ao autor, por outro ele carrega uma significação religiosa própria da cultura no Sertão nordestino. No diálogo, Mestre carpina diz para Severino que embora a miséria seja “mar largo”, “para cruzá-la vale bem qualquer esforço”. José diz que o “mar” da miséria “precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alaga e devasta a terra inteira”. Mas se cada severino tem como sina lutar constantemente contra seu destino de pobreza, se contentando com o simples fato da miséria não aumentar, não seria tal atitude um conformismo disfarçado de luta? Nesse sentido Severino questiona: “há muito no lamaçal apodrece a sua vida? e a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista?” e tem como resposta “o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida”. Com efeito a religiosidade católica popular no Brasil costuma ensinar essa atitude de conformismo de José, onde nos submetemos a esta “vida severina” pelo simples motivo de ser vida.
O diálogo de José e Severino é interrompido na parte treze por uma mulher que anuncia o nascimento de uma criança, o filho de José. A ironia: enquanto Severino pensa em saltar para a morte, o filho de José “saltou para dentro da vida”.
Parte quatorze. Os vizinhos, amigos e duas ciganas visitam o mocambo para ver o menino. Ao modo dos cânticos religiosos de Natal, os presentes celebram o nascimento do menino, que consideram em algo especial, já que coisas boas aconteceram na favela. Porque a maré permaneceu alta “a lama ficou coberta e o mau-cheiro não voou”. O céu ficou estrelado e os mocambos se tornaram lugares mais aconchegantes, modelares, tal como gostam de descrever alguns acadêmicos (uma crítica do autor a um sociólogo de sua época do qual discordava). Mas se tudo isso se deve ao nascimento dessa criança, ou se ao menos essas são as impressões de quem se alegra com o fato, o que esperar de seu futuro, de seu destino? Se compararmos com a vida de Jesus (e a inspiração do texto de João Cabral de Melo Neto autoriza a fazê-lo), perceberemos que Jesus nasce pobre, vive pobre e, ao pregar uma doutrina que ameaça quem detém o poder em seu país, morre de forma cruel e infame. Este é o destino de todos os severinos?
Na parte quinze, em outro paralelo com o presépio, chegam visitantes trazendo presentes para o recém-nascido. Nenhum deles tem mais a oferecer que aquilo que faz parte de seu próprio dia a dia e de sua subsistência. São caranguejos dos mangues, o leite materno de uma vizinha, o jornal que serve de cobertor, frutas, ostras do cais de Aurora e outros. Numa situação de miséria como aquela os moradores da comunidade percebem a necessidade da colaboração.
Duas mulheres presentes pedem a atenção de todos na parte dezesseis do poema. Querem desvelar para os pais e seus amigos o destino que aguarda pelo menino que viera à luz. Se na parte quatorze se levanta a dúvida de qual seria o destino deste menino, agora as que se apresentam como “ciganas do Egito” lho vão revelar. A primeira cigana vaticina: engatinhará “por aí, com aratus” e “aprenderá a caminhar na lama”; Aprenderá a caçar “catando pelo chão tudo o que cheira a comida” e revirando o lixo; Quando adulto vestirá roupas sempre escuras de lama, pois será um pescador de siris e camarão. Mas o vaticínio da segunda cigana acrescenta mais um elemento ao destino desta criança severina. Poderá também ter uma vida com mais “planura” sendo um “homem de ofício”. Para se libertar dos mangues poderá vir a trabalhar numa fábrica, onde suas vestes permanecerão negas, não de lama, mas de “graxa de sua máquina”. Em troca de um salário baixo mas relativamente estável se submeterá à exploração do industrial e suas máquinas. Adivinhação ou destino já anunciado pela situação social em que o menino nasce?
A penúltima parte do poema se oferece à força e à luta que os severinos travam contra sua sina e a morte. Aquela criança prematura e guenza teima em vencer a morte que tão cedo lhe ameaça. Desnutrido, seu coração, “a máquina de homem”, continua a bater “como um sim numa sala negativa”. Sua vida talvez repita o destino de cada severino, essa miséria que nunca acaba, como se fosse “a última onda que o fim do mar sempre adia”. Entretanto, se o nascimento de uma criança pode ser motivo de preocupação para pais que vivem em miséria, certamente é também motivo de renovadas esperanças. Um filho é a chance de uma nova história, de um novo destino. Se o destino de um morador de mocambo repetiu a sina de cada severino retirante que antes tentou uma nova vida no Recife, o desta criança, nascida na cidade, poderá ser um pouco melhor pelo acesso que poderá ter à educação que, se não é suficiente, ao menos será melhor que a que os pais obtiveram no Sertão. O nascimento da criança é “belo porque com o novo todo o velho contagia”, “porque corrompe com sangue novo a anemia” e “infecciona a miséria com vida nova e sadia”. Como no Natal de Jesus, presente no imaginário da tradição popular, a criança que nasce na pobreza pode carregar consigo a força de começar um caminho novo e mudar o destino que marcou seus pais.
O poema termina com o carpina indo ao encontro de Severino, que não tomou parte de nada do que ocorreu no mocambo. Vem para lhe contar porque agora pensa que o protagonista não deveria “saltar fora da ponte e da vida”: para ele, “é difícil defender” a vida, “ainda mais quando ela é esta que vê, severina”, mas “não há melhor resposta que o espetáculo da vida”. Se na parte doze fica a dúvida sobre a atitude de José carpina, se é uma incitação a lutar contra a miséria ou se é um conformismo diante do aparentemente inevitável destino dos moradores de mocambo no Recife, agora fica claro o que move o otimismo do carpinteiro: é a vontade de viver, a mesma que moveu o retirante do Sertão para o litoral. E só essa vontade de viver é capaz de mover cada severino a desejar e lutar por uma vida melhor para si e para seus semelhantes. Cabe a cada brasileiro a tarefa de buscar e realizar soluções que permitam que o nome “severino”, usado de empréstimo pelo grande João Cabral de Melo Neto, seja devolvido ao nordestino como nome próprio e nunca mais precise ser usado como sinônimo de miséria.
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Morte e Vida Severina
Morte e Vida Severina: Esperança, Destino e Pobreza
Na primeira parte do poema o retirante se apresenta. Trata-se de “Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba”. Não é por acaso que o escritor escolheu esse nome, já que é muito comum no Sertão nordestino. Milhares de nordestinos partilham o protagonista seu nome, assim como sua miséria e seu sofrimento. Portanto, o que parece ser uma tentativa de particularizar quem é o protagonista na verdade faz o contrário. Ao se apresentar, Severino encarna todos os retirantes do Sertão, “iguais em tudo na vida” e na perspectiva constante do mesmo tipo de “morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. E viver a “vida severina”, tendo como perspectiva não mais que a morte, é a “sina” que une todos os nordestinos que, vivendo no árido Sertão, trabalham duramente para “abrandar estas pedras suando-se muito em cima” e “tentar despertar terra sempre mais extinta”. Sem apoio suficiente do Estado, submetidos ao domínio, à violência e à exploração dos coronéis do Sertão, sem meios de produzir para sua subsistência, estes severinos vêem-se obrigados a emigrar de suas terras ou moradias para as cidades.
Na segunda parte o retirante encontra dois homens que carregam um defunto. Vítima de uma das formas de “morte severina” citadas na primeira parte, este agricultor, “Severino Lavrador”, morreu de emboscada por causa de uma disputa de terras. O diálogo de Severino com os dois “irmãos das almas” revela o motivo: aquele lavrador morreu por causa da cobiça de outro que desejava se apoderar de seus “hectares de terra” “que não dá nem planta brava” mas onde ele “plantava palha”. Os interlocutores parecem não mais se indignar com a injustiça que ocorre, pois é uma situação contra a qual os severinos do Nordeste não tem como lutar. Afinal, “o que é que acontecerá contra a espingarda” e o assassino? Simplesmente terá “mais campo”. Interessante verificar que ao se falar da bala que mata em invés da identidade do assassino (que parece ser conhecida pelos que carregam o corpo) vê-se no acontecimento algo comum para a vida naquela região. Com efeito as personagens não demonstram a indignação que as poderia levar a lutar contra tal injustiça.
A terceira parte nos monstra um aspecto interessante da cultura no Sertão nordestino: a religiosidade que permeia sua imaginação. O caminho de Severino é marginal ao rio Capibaribe que, por causa da seca, está fino e, em alguns pontos, seco. A sucessão de pequenos arruados cortados pelo fino rio, que vez ou outra encontra uma vila maior, parece ao Severino as contas de um rosário, objeto popular de devoção católica. E o andar do retirante através de uma paisagem monótona e estafante, só suportável pela esperança de alcançar uma vida melhor ao final, lhe é percebido como a reza de uma ladainha ou de um “rosário até o mar onde termina”. A religiosidade que notamos no texto não é uma religiosidade particular do retirante, algo que este ofereça espontaneamente para Deus como forma de devoção, mas uma carga que deve suportar, uma penitência que deve realizar para obter sua redenção. A prática da reza do rosário, tal como a da ladainha, é uma devoção aprendida e realizada socialmente e só pode ser entendida no contexto cultural do devoto. Quando Severino reza seu rosário do retirante o faz com todos os outros retirantes que fogem da “morte severina” em busca de uma vida melhor. Na vida do nordestino severino as peregrinações, as rezas de rosário e as missas se misturam com a crença em benzedeiras, em festas religiosas e em advinhas e lhe dão toda uma forma de ver e entender seu mundo.
Na quarta parte, Severino retirante mais uma vez se depara com a morte. Num local onde esta é sempre tão presente também a religiosidade permeia as tradições populares e trás conformação para os que ainda vivem e significado para os sofrimentos. Mas, ao tempo que a maioria das personagens se conforma, alguém de fora da casa ironiza as excelências (rezas em forma de canto pelas quais o defunto é oferecido à vida após a morte). Como poderia o finado levar para o além aquilo que talvez nunca possuiu no mundo da “vida severina”? Mesmo o caixão que carrega o finado não lhe pertence, não poderia ter comprado em vida, e certamente a “cera, capuz e cordão”, além da imagem da “Virgem da Conceição”, são coisas que lhe custariam grande dificuldade para adquirir. Novamente vemos aqui temos a referência a uma peregrinação. As excelências lembram da cera e cordão para a vela, da imagem da Virgem para a procissão e assim o finado poderá se juntar a tantos outros defuntos que sofrem a “morte severina”, retirantes desta vida para o além. Mas as únicas coisas que esses retirantes realmente possuem e poderiam levar a qualquer lugar, mesmo para o mundo do além, são as “coisas de não: fome, sede, privação”.
O calor, a seca e a falta de comida e de abrigo submete o retirante a um sofrimento intenso durante sua jornada. Entretanto, o nordestino do Agreste e da Caatinga conta com pouca ou nenhuma assistência do Estado e de organizações em geral para sobreviver, o que o leva a decidir enfrentar esse caminho e emigrar. Mas preferiria permanecer em seu local de nascimento e subsistir de sua lavoura ou, tendo saído de sua terra, “achar um trabalho de que viva”. Na quinta parte do poema Severino, cansado, pensa que, se o rio em alguns momentos pára, poderia também ele parar seu caminho e tentar permanecer. Entretanto, o que faz “o Capibaribe interromper sua linha” é a seca. E a consequência da seca é a escassez e a morte, elementos sempre presentes por todo o caminho de Severino. É a morte “ativa”, às vezes até “festiva” (quando cantada na religiosidade popular). Onde quer que se encontre água no Sertão nunca será suficiente para a população que a divide com a parte que é “consumida pelas roças, pelos bichos, pelo sol com suas línguas”.
Numa terra em que o clima não favorece o pequeno e médio lavrador a agricultura não é capaz de prosperar sem ajuda do poder público e dos bancos. Dada a omissão destes para a pequena e média propriedade, o resultado nas cidades do Sertão é a falta de emprego e a escassez. A “vida severina” é uma vida de privações e de miséria, tanto no campo como nas cidades. Com a exceção dos grandes proprietários de terras, que têm acesso a recursos financeiros e materiais suficientes para fazer a terra árida a produzir, a grande massa da população está submetida a essa situação. Na sexta parte do poema o retirante descobre que não encontrará trabalho naquela ou qualquer outra cidade do Sertão. Ninguém dará emprego para um retirante que não sabe mais que lavrar “terra má” e plantar “o algodão, a mamona, a pita, o milho” ou qualquer outro produto do modo que aprendeu a fazer, ou seja, no estilo do “roçado”. Somente os grandes proprietários de terra (dentre estes também aquele tipo de proprietário que buscou com sua “ave-bala” obter “mais campo” para “fazer voar as filhas-bala” e ampliar seu latifúndio) são capazes de mecanizar suas plantações e fazer uso de técnicas modernas de irrigação e tratamento do solo. Sem apoio, o médio produtor não é capaz de concorrer com o grande, pois este conta com maior produtividade, menores custos e apoio dos bancos (para não falar das condições excepcionais que não raro os grandes produtores conseguem obter dos bancos públicos).
A consequência disso é que os severinos do Sertão, se de um lado se vêem obrigados a abandonar suas terras em busca de sobrevivência na Zona da Mata ou em cidades grandes do litoral, deixando suas terras para os grandes proprietários, por outro lado não conseguem trabalho pois não têm nenhuma qualificação ou educação para os tipos de emprego que são oferecidos nos locais para onde migram. Em suas terras de origem “ninguém aprendeu outro ofício, ou aprenderá”. A “vida severina” os acompanham para onde quer que se retirem. Mas esta parte sexta do poema também apresenta um tipo de personagem que não é grande proprietário de terras, não se pode dizer que seja rico, mas consegue sobreviver explorando uma realidade muito presente no Sertão nordestino. A mulher com que o retirante-protagonista dialoga explica que como lá “a morte é tanta” ela vive “de a morte ajudar”. As profissões que se relacionam com a miséria, a doença e a morte são fonte de renda num local onde “só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar”. Mas mesmo esses ofícios são vedados aos severinos retirantes. Para serem médicos ou farmacêuticos precisariam de acesso à educação e ensino superior. E para serem benzedeiras, curandeiros ou rezadeiras, verdadeiros oficiantes da religiosidade popular, reconhecidos a ponto de vir gente “de um raio de muitas léguas” lhes chamar, precisariam de entendimento em artes mágicas e rezas ensinado a poucos. Não só para os latifundiários, mas também a esse tipo de classe média, as mortes “dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear” o caixão no solo.
Um lampejo de esperança, um breve sonho de alívio toma o retirante na parte sete do poema quando chega à Zona da Mata. Depois de longa jornada por terras áridas o protagonista encontra um solo mais fértil, um clima mais úmido, onde os rios perenes têm “água vitalícia” e a terra, ao contrário da encontrada na Caatinga, é “fácil amansar” por ser “doce” e “tão feminina”. Para o retirante acostumado com a Caatinga de solo pedregoso e vegetação ressequida a Zona da Mata lhe parece a chance de uma vida melhor. É lá que então ele deseja plantar “sua sina”, seu destino. Mas não há lugar para ele na Zona da Mata. Nem para nenhum outro severino retirante. A Zona da Mata está tomada pelas imensas plantações onde não se avista “ninguém, só folhas de cana fina” e algumas usinas. O protagonista está pensando em se estabelecer nessa terra que parece o paraíso, o fim de seu “rosário”, mas está iludido. Os grandes usineiros de álcool e cana dominam toda a região que, ao invés de servir para o assentamento de pequenos produtores rurais e suas famílias, estão nas mãos de poucos proprietários. E o trabalho oferecido é pouco e perigoso por expor o trabalhador a riscos de mutilação durante as colheitas.
Na parte oitava do auto, o diálogo entre pessoas em um enterro desfaz a ilusão. O texto que se segue, imortalizado na voz de Chico Buarque de Holanda (na música “Funeral de um lavrador” de 1969), ironiza o trabalhador defunto que sonhou com justiça no campo com uma divisão de terras que resolvesse a miséria de sua “vida severina”. A terra que cobre a cova será, enfim, sua “roça”, onde o defunto poderá trabalhar para si e não mais “a meias, como antes em terra alheia”, e nem como escravo no eito (latifúndio que emprega trabalho escravo ou semi-escravo). Depois de anos de trabalho duro e miseravelmente remunerado o defunto tem seu caixão como “o brim do Nordeste”, que o “veste, como nunca em vida”. E essa terra de latifúndio que o cobre é a mesma que já “bebeu” seu “suor vendido”, sua juventude, sua felicidade e seu tempo de convivência conjugal, familiar e social.
Esta terra rica da Zona da Mata está tomada pelos grandes proprietários. E tal é o domínio que eles exercem sobre essa região que nem trabalhadores, nem os próprio rios, lhes são capazes de resistir. Na parte nona do poema Severino entende “por que em paragens tão ricas o rio não corta em poços como ele faz na Caatinga”. Ele “vive a fugir dos remansos” porque é desviado pelos latifundiários para a irrigação de suas plantações. E nem mesmo nessa terra fértil os trabalhadores recebem uma parte maior por seu “suor vendido”, já que estas são terras de “grande cobiça”. O protagonista conclui que, se deseja defender sua vida da “tal velhice que chega antes de se inteirar trinta”, neste local não deve se estabelecer. “O melhor é apressar o fim desta ladainha, fim do rosário de nomes” de cidades e paragens “que a linha do rio enfia”. Sua esperança de vida melhor o impele em direção ao Recife onde acredita vai encontrar a solução para sua vida miserável, assim como a religiosidade de seu povo acredita que a reza comunitária do rosário, se não melhora sua vida, ao menos impede que se torne insuportável.
Na parte dez, o retirante chega a Recife. Cansado, procura descansar e ouve a conversa entre dois coveiros. Falam sobre o trabalho no cemitério. Para os ricos o cemitério reserva “as belas avenidas”, “o bairro da gente fina”, ou seja, “o bairro dos usineiros, dos políticos, dos banqueiros” e também “dos industriais, dos membros das associações patronais”. Claro que se o defunto, ou melhor, o que herda o dinheiro que o defunto não conseguiu levar para o além, não puder pagar para estar enterrado em tal local, pode escolher o “bairro dos funcionários, inclusive extranumerários, contratados e mensalistas”, tais como “os jornalistas, os escritores, os artistas” e também “os bancários”, os “comerciários, os lojistas, os boticários” e aqueles que, apesar de terem profissão liberal, “não se liberaram jamais” da submissão ao poder econômico que a elite exerce sobre estes de classe média. Os “bairros ricos” do cemitério são melhor cuidados e apresentam menos trabalho aos coveiros. As classes alta e média conseguem melhor assistência de saúde, melhor qualidade de vida, melhor acesso a educação de boa qualidade e tudo isso lhes permite mais que uma vida melhor: lhes permite estarem enterrados em locais mais bem cuidados e dignos. Mas o desumano não está no tratamento que é destinado a quem tem como pagar, mas no tratamento que é negado aos que, apesar de uma vida de trabalho duro, não têm como pagar por uma cova digna.
Neste momento severino nota que, assim como para todos os severinos, o quinhão do cemitério que lhe caberá será aquele de várzea onde “o rio afoga na preamar e sufoca na baixa-mar”. Severino é “gente sem instituto, gente de braços devolutos” e de “enterros gratuitos”. Ele é “gente do Sertão que desce para o litoral” e “fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha”. Para o coveiro, as pessoas que, como Severino, estão destinadas a uma vida de miséria numa favela dos arredores do Recife deveriam ser sacudidos “de qualquer ponte dentro do rio e da morte”. Este coveiro, trabalhador assalariado que não tem consciência de sua própria situação de alienação e de exploração, que acha natural uns terem mais que outros e uns serem tratados com mais dignidade que outros, que não entende a razão que leva pessoas como Severino a sair do Sertão para o Recife, que acredita que alguém possa morar em uma favela cheia de lodo por opção pessoal ou por preguiça, é um legítimo representante da cultura dominante que a burguesia impõe às classes dominadas como se fosse verdadeira e universal. Agora Severino percebe, nas palavras do coveiro, que “vindo por essas caatingas, vargens, ai esta o seu erro: vem é seguindo seu próprio enterro”.
Severino fica desiludido. Na décima-primeira parte do poema, Severino percebe que não tem como fugir de sua “vida severina” e que o seu destino é forte demais para que possa lutar contra. Não tem como evitar a morte e, quando essa chegar, evitar sua indigência. É fato que ele sabia que depois do “rosário de cidades e de vilas” que caminhou “não seria diferente a vida de cada dia”, mas teve a esperança de “que ao menos aumentaria na quartilha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa”, ou o seu “aluguel com a vida”. É o desejo da grande maioria dos brasileiros: uma vida que, se não rica, ao menos seja digna, com comida e saúde suficiente. Mas, se isso é muito menos do que qualquer ser humano merece, nem isso lhe é garantido por uma sociedade que privilegia quem já tem muito e marginaliza quem já está a sua margem e tem nada. Agora Severino acredita que seu enterro ele seguia, que não lhe resta mais para onde se retirar, e decide apressar a morte: pretende de jogar da ponte de um dos cais do Capibaribe.
Na décima-segunda parte, Severino trava diálogo com José, o carpinteiro. Esse diálogo muda os ânimos de Severino, mas demonstra porque Morte e Vida Severina é um auto de Natal. A relação entre este carpinteiro (“Seu José, mestre carpina”, vindo de “Nazaré da Mata”) e São José, pai de Jesus, é clara. Nesta parte do poema começa algo que poderíamos comparar com a encenação de um presépio. Se de um lado o tema de Natal está presente porque assim foi encomendado ao autor, por outro ele carrega uma significação religiosa própria da cultura no Sertão nordestino. No diálogo, Mestre carpina diz para Severino que embora a miséria seja “mar largo”, “para cruzá-la vale bem qualquer esforço”. José diz que o “mar” da miséria “precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alaga e devasta a terra inteira”. Mas se cada severino tem como sina lutar constantemente contra seu destino de pobreza, se contentando com o simples fato da miséria não aumentar, não seria tal atitude um conformismo disfarçado de luta? Nesse sentido Severino questiona: “há muito no lamaçal apodrece a sua vida? e a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista?” e tem como resposta “o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida”. Com efeito a religiosidade católica popular no Brasil costuma ensinar essa atitude de conformismo de José, onde nos submetemos a esta “vida severina” pelo simples motivo de ser vida.
O diálogo de José e Severino é interrompido na parte treze por uma mulher que anuncia o nascimento de uma criança, o filho de José. A ironia: enquanto Severino pensa em saltar para a morte, o filho de José “saltou para dentro da vida”.
Parte quatorze. Os vizinhos, amigos e duas ciganas visitam o mocambo para ver o menino. Ao modo dos cânticos religiosos de Natal, os presentes celebram o nascimento do menino, que consideram em algo especial, já que coisas boas aconteceram na favela. Porque a maré permaneceu alta “a lama ficou coberta e o mau-cheiro não voou”. O céu ficou estrelado e os mocambos se tornaram lugares mais aconchegantes, modelares, tal como gostam de descrever alguns acadêmicos (uma crítica do autor a um sociólogo de sua época do qual discordava). Mas se tudo isso se deve ao nascimento dessa criança, ou se ao menos essas são as impressões de quem se alegra com o fato, o que esperar de seu futuro, de seu destino? Se compararmos com a vida de Jesus (e a inspiração do texto de João Cabral de Melo Neto autoriza a fazê-lo), perceberemos que Jesus nasce pobre, vive pobre e, ao pregar uma doutrina que ameaça quem detém o poder em seu país, morre de forma cruel e infame. Este é o destino de todos os severinos?
Na parte quinze, em outro paralelo com o presépio, chegam visitantes trazendo presentes para o recém-nascido. Nenhum deles tem mais a oferecer que aquilo que faz parte de seu próprio dia a dia e de sua subsistência. São caranguejos dos mangues, o leite materno de uma vizinha, o jornal que serve de cobertor, frutas, ostras do cais de Aurora e outros. Numa situação de miséria como aquela os moradores da comunidade percebem a necessidade da colaboração.
Duas mulheres presentes pedem a atenção de todos na parte dezesseis do poema. Querem desvelar para os pais e seus amigos o destino que aguarda pelo menino que viera à luz. Se na parte quatorze se levanta a dúvida de qual seria o destino deste menino, agora as que se apresentam como “ciganas do Egito” lho vão revelar. A primeira cigana vaticina: engatinhará “por aí, com aratus” e “aprenderá a caminhar na lama”; Aprenderá a caçar “catando pelo chão tudo o que cheira a comida” e revirando o lixo; Quando adulto vestirá roupas sempre escuras de lama, pois será um pescador de siris e camarão. Mas o vaticínio da segunda cigana acrescenta mais um elemento ao destino desta criança severina. Poderá também ter uma vida com mais “planura” sendo um “homem de ofício”. Para se libertar dos mangues poderá vir a trabalhar numa fábrica, onde suas vestes permanecerão negas, não de lama, mas de “graxa de sua máquina”. Em troca de um salário baixo mas relativamente estável se submeterá à exploração do industrial e suas máquinas. Adivinhação ou destino já anunciado pela situação social em que o menino nasce?
A penúltima parte do poema se oferece à força e à luta que os severinos travam contra sua sina e a morte. Aquela criança prematura e guenza teima em vencer a morte que tão cedo lhe ameaça. Desnutrido, seu coração, “a máquina de homem”, continua a bater “como um sim numa sala negativa”. Sua vida talvez repita o destino de cada severino, essa miséria que nunca acaba, como se fosse “a última onda que o fim do mar sempre adia”. Entretanto, se o nascimento de uma criança pode ser motivo de preocupação para pais que vivem em miséria, certamente é também motivo de renovadas esperanças. Um filho é a chance de uma nova história, de um novo destino. Se o destino de um morador de mocambo repetiu a sina de cada severino retirante que antes tentou uma nova vida no Recife, o desta criança, nascida na cidade, poderá ser um pouco melhor pelo acesso que poderá ter à educação que, se não é suficiente, ao menos será melhor que a que os pais obtiveram no Sertão. O nascimento da criança é “belo porque com o novo todo o velho contagia”, “porque corrompe com sangue novo a anemia” e “infecciona a miséria com vida nova e sadia”. Como no Natal de Jesus, presente no imaginário da tradição popular, a criança que nasce na pobreza pode carregar consigo a força de começar um caminho novo e mudar o destino que marcou seus pais.
O poema termina com o carpina indo ao encontro de Severino, que não tomou parte de nada do que ocorreu no mocambo. Vem para lhe contar porque agora pensa que o protagonista não deveria “saltar fora da ponte e da vida”: para ele, “é difícil defender” a vida, “ainda mais quando ela é esta que vê, severina”, mas “não há melhor resposta que o espetáculo da vida”. Se na parte doze fica a dúvida sobre a atitude de José carpina, se é uma incitação a lutar contra a miséria ou se é um conformismo diante do aparentemente inevitável destino dos moradores de mocambo no Recife, agora fica claro o que move o otimismo do carpinteiro: é a vontade de viver, a mesma que moveu o retirante do Sertão para o litoral. E só essa vontade de viver é capaz de mover cada severino a desejar e lutar por uma vida melhor para si e para seus semelhantes. Cabe a cada brasileiro a tarefa de buscar e realizar soluções que permitam que o nome “severino”, usado de empréstimo pelo grande João Cabral de Melo Neto, seja devolvido ao nordestino como nome próprio e nunca mais precise ser usado como sinônimo de miséria.
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1 comentários:
maravilhoso,me esclareceu muito sobre a poesia!!
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